segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Dom Quixote no Brasil

JM Cunha Santos


O Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, o livro mais traduzido no mundo depois da Bíblia, desembarcou no Brasil para, aqui também, enfrentar moinhos de vento. Ele, quatrocentos anos depois, ainda presa de alucinações; nós brasileiros, de certezas que angustiam, machucam, decepcionam e revoltam. Um enredo genial, capaz de vencer o luxo da Estácio de Sá e até mesmo o da impagável Beija Flor Nilópolis
Na Marquês de Sapucaí, o cavaleiro andante, ladeado por camponeses, conseguiria aprisionar os corruptos, venceria o dragão da inflação e lavaria a alma do povo brasileiro, passeando pela genialidade de Tarsila do Amaral, Chico Buarque de Holanda e Geraldo Vandré. A Mocidade Independente de Padre Miguel, com tanques de guerra e navios negreiros na avenida, recolocaria em nossa memória que o povo brasileiro, assim como venceu a escravidão e a ditadura, em luta sempre desigual, é capaz também de vencer a corrupção institucionalizada.
Estava faltando isso na cultura brasileira: um movimento de massas apoteótico que encontrasse na literatura esse nicho de realidade que a maioria de nossos intelectuais, uma parte generosamente corrompida, outra por absoluta ociosidade social, prefere esconder. Por isso, obras como “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos e “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, foram revisitadas na Marquês de Sapucaí. Para mostrar que a maioria dos brasileiros ainda seca, que jagunços e pistoleiros ainda expulsam e assassinam o homem do campo, ainda existe trabalho escravo e a dignidade do trabalhador é corroída dia e noite em paraísos fiscais.
Enquanto nos conformamos em escrever poesias herméticas, inatingíveis ao comum dos mortais e num país de realidades tão pungentes, a Mocidade Independente de Padre Miguel soltou o grito engasgado na garganta do povo brasileiro. É como se seguíssemos a conspiração literária internacional que enche a literatura e o cinema de androides, humanoides, vampiros e lobisomens, mas deixa de lado, propositadamente, as histórias verdadeiramente humanas.
Na Sapucaí, Dom Quixote, pela primeira vez e quatrocentos anos depois, enfrentou seres não imaginários e deixou o país propondo educação, saúde, justiça social e, principalmente, honestidade. Deixou o Brasil ouvindo o povo cantar que “um filho teu não foge à luta”. Tomara que o cavaleiro andante vença sua batalha na avenida. Tomara que o povo brasileiro vença mais essa batalha no Brasil.

Um comentário:

  1. Osman Aguiar Bacelar Neto9 de fevereiro de 2016 às 15:14

    Extraordinário. A leitura do enredo foi perfeita. O Brasil coube em sua interpretação. Belo texto.

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