quarta-feira, 12 de julho de 2017

O solitário do shopping

JM Cunha Santos 


Aqui não há moscas
(é degradante viver num país sem moscas)
e mulheres bem lavadas me provocam arritmia sexual
Estou diante de um terrível segredo a sete chaves, é como me sinto
e esses homens de sapatos pretos e barbas velhas interrompem minha inspiração

Não há náuseas, nada fede e isso me importuna
como importunam os óculos nas vitrines
convidando os transeuntes a enxergar assassinatos
ou as pessoas que parecem espelhos, vazadas pele adentro
e o relógio que eu não compro (porque não posso) e marca o horário do meu inferno sensorial
Não sei o que me trouxe a lugar tão limpo; sinto falta do esgoto, das caranguejeiras atrapalhando o arco-íris
Isso aqui é uma terra estupida sem bandidos, não há nenhum horror, ninguém sendo perseguido
nada parecido ao cheiro de sangue, nada que lembre o risco de viver

Não sei porque passeio nessa mansão de joias e chocolates
mas me sento aqui, no meio de gente cheirosa e bem alimentada
eu, o solitário abstraído que tantos dias amanheceu nos cabarés
quando coçava piolhos nas bonecas e dormia com mulheres mal banhadas
à procura de qualquer corpo que não fosse o meu
Deus me livre de tanto brilho, Deus me salve de tanta luz
enquanto ainda sou um bicho da escuridão!
II
Eu que suguei os dentes cariados das putas
aqui descanso minha imagem numa poltrona de massagistas
- um crime, afinal, contra a perturbação animal poética
um blackout na ganância resumida dos profetas
pois que, aqui, de joelhos diante da xícara de café expresso
entendo que viver bem é acostumar-se ao brilho e ao luxo da podridão

E eis-me santificado nessa terra sem cansaços e sem telhas
eis-me, finalmente, num lugar onde a solidão não escorrega
a driblar destinos num mundo liso de lasers e perfumes civilizados
- eu sinto falta dos urubus desassistidos da minha paisagem
desempregados, negros e famintos penteando o céu

Nesse paraíso de veludos, jeans, coletes e gravatas, de gente de marca
certamente ninguém vai favorecer os trapos da minha alma
Nesse chão eletrônico onde pulsam mais celulares que corações
a fera digital carbônica e alcoólica que em mim habita jamais aprenderá o valor do perdão

III
Eu vejo pernas passando na direção do consumo crônico
vejo fígados poderosos subindo de escada rolante
passos velhos, passos jovens, num imenso pátio de antigas incertezas;
Tem sempre alguém dizendo alguma coisa num ouvido que roubou da mentira
a ideia de paz, neste país, é feita de valores, importações e pó compacto
e os passageiros desse tumulto sabem que não existe onde chegar

Só, num mundo que se arrasta de acordo com os preços das meias
entre cabelos que passaram mais tempo no salão que nas cabeças
percebo que tudo aqui, até as águas nos sovacos das pessoas, cheira a imposto de renda e alucinação
Somente eu lembro as moças de pernas pro ar nas sarjetas
somente eu tomo o suco de fraudes servido por um garçom sem fraque nem cartola
só eu como o sanduíche de ilusão com sabor de naftalina

nas mesas confusas em que espero pelo futuro comprando desesperanças do passado no Shopping São Luís

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