JM Cunha Santos
Aqui não há moscas
(é degradante viver num país sem moscas)
e mulheres bem lavadas me provocam
arritmia sexual
Estou diante de um terrível segredo a
sete chaves, é como me sinto
e esses homens de sapatos pretos e
barbas velhas interrompem minha inspiração
Não há náuseas, nada fede e isso me
importuna
como importunam os óculos nas vitrines
convidando os transeuntes a enxergar
assassinatos
ou as pessoas que parecem espelhos,
vazadas pele adentro
e o relógio que eu não compro (porque
não posso) e marca o horário do meu inferno sensorial
Não sei o que me trouxe a lugar tão
limpo; sinto falta do esgoto, das caranguejeiras atrapalhando o arco-íris
Isso aqui é uma terra estupida sem
bandidos, não há nenhum horror, ninguém sendo perseguido
nada parecido ao cheiro de sangue, nada
que lembre o risco de viver
Não sei porque passeio nessa mansão de
joias e chocolates
mas me sento aqui, no meio de gente
cheirosa e bem alimentada
eu, o solitário abstraído que tantos
dias amanheceu nos cabarés
quando coçava piolhos nas bonecas e
dormia com mulheres mal banhadas
à procura de qualquer corpo que não
fosse o meu
Deus me livre de tanto brilho, Deus me
salve de tanta luz
enquanto ainda sou um bicho da
escuridão!
II
Eu que suguei os dentes cariados das
putas
aqui descanso minha imagem numa poltrona
de massagistas
- um crime, afinal, contra a perturbação
animal poética
um blackout na ganância resumida dos
profetas
pois que, aqui, de joelhos diante da
xícara de café expresso
entendo que viver bem é acostumar-se ao
brilho e ao luxo da podridão
E eis-me santificado nessa terra sem
cansaços e sem telhas
eis-me, finalmente, num lugar onde a
solidão não escorrega
a driblar destinos num mundo liso de
lasers e perfumes civilizados
- eu sinto falta dos urubus desassistidos
da minha paisagem
desempregados, negros e famintos
penteando o céu
Nesse paraíso de veludos, jeans, coletes
e gravatas, de gente de marca
certamente ninguém vai favorecer os
trapos da minha alma
Nesse chão eletrônico onde pulsam mais
celulares que corações
a fera digital carbônica e alcoólica que
em mim habita jamais aprenderá o valor do perdão
III
Eu vejo pernas passando na direção do
consumo crônico
vejo fígados poderosos subindo de escada
rolante
passos velhos, passos jovens, num imenso
pátio de antigas incertezas;
Tem sempre alguém dizendo alguma coisa
num ouvido que roubou da mentira
a ideia de paz, neste país, é feita de
valores, importações e pó compacto
e os passageiros desse tumulto sabem que
não existe onde chegar
Só, num mundo que se arrasta de acordo
com os preços das meias
entre cabelos que passaram mais tempo no
salão que nas cabeças
percebo que tudo aqui, até as águas nos
sovacos das pessoas, cheira a imposto de renda e alucinação
Somente eu lembro as moças de pernas pro
ar nas sarjetas
somente eu tomo o suco de fraudes
servido por um garçom sem fraque nem cartola
só eu como o sanduíche de ilusão com
sabor de naftalina
nas mesas confusas em que espero pelo
futuro comprando desesperanças do passado no Shopping São Luís
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