The Intercept Brasil – Apesar de frequentemente ser apresentado como “comunista”,
Flavio Dino, governador do Maranhão, está em uma batalha na direção oposta ao
radicalismo. Ele quer o centro. Único governador eleito do PC do B e visto como
uma das lideranças mais promissoras da esquerda, Dino defende uma “união ampla”
com o centro democrático como única maneira de enfrentar o autoritarismo de
Jair Bolsonaro.
Foi uma ampla coalizão – que juntou, no total, 16 partidos – que
possibilitou que o ex-juiz federal se tornasse governador do Maranhão. A
vitória de Flávio Dino nas eleições de 2014 colocou fim aos 56 anos da dinastia
dos Sarney no Maranhão – e foi uma das poucas conquistas eleitorais da
esquerda, que tem amargado sucessivas derrotas.
Mas Dino não rompeu com os
oponentes. Pelo contrário: os tem chamado para conversar. Na final de
junho, ele se reuniu com o ex-opositor José Sarney para discutir
os rumos da democracia brasileira – encontro que também já fez com os
ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula, que visitou na prisão.
No comando do estado com o
segundo pior IDH do Brasil, Flávio Dino aumentou o investimento estatal em
segurança e educação e aumentou o piso salarial dos professores para R$ 5.750 –
é mais do que o dobro do valor pago em São Paulo, estado mais rico do Brasil.
Na contramão da crise econômica, o Maranhão também teve um crescimento do PIB
de 9,7% em 2017 e, no ano passado, de 2,8% – acima da média nacional. Em 2018, Dino foi reeleito no primeiro turno com 59% dos votos válidos
– mais ou menos o mesmo índice de aprovação de seu governo naquele ano.
Por causa da rápida ascensão
e a capacidade de articular apoio – em 2018 sua coalizão juntou nada menos do
que PCdoB, PDT, PRB, PPS, PTB, DEM, PP, PR, PTC, PPL, PROS, AVANTE, PEN, PT,
PSB e Solidariedade – há quem especule que Dino estaria de olho na disputa
presidencial de 2022. O próprio Lula o aponta como liderança importante na esquerda. Mas
ele desconversa: “Estamos muito longe deste momento”, ele me disse.
Os autodenominados “agentes da lei” dizem que seus críticos são
defensores da corrupção. Isso é o auge da prepotência e do autoritarismo. Além
de, aí sim, ser ridículo. Minha solidariedade aos jornalistas, de vários
veículos de comunicação, injustamente agredidos em sua honra.
Conversei com Flávio Dino no final de maio. Alto, corpulento e
de voz forte, o governador me recebeu na sala de reuniões do Palácio dos Leões,
no centro histórico de São Luís, sede do governo estadual. Em 1h10 de conversa,
só tomou água e recusou o café. Embora a conversa tenha ocorrido dias antes das
primeiras reportagens da série Vaza Jato, o governador e ex-juiz federal
criticou duramente a atuação de Sergio Moro que, assim como ele, trocou a
magistratura pela política. Dino foi juiz federal no Maranhão por 12 anos e
chegou a presidir a Associação dos Juízes Federais do Brasil, a Ajufe, entre
2000 e 2002. Abriu mão da toga para se filiar ao PC do B em 2006, mesmo ano em
que se elegeu deputado federal.
Para o governador e ex-juiz, a operação Lava Jato se transformou
em instrumento de luta política, responsável por danos econômicos – no caso da
Petrobrás – e prisões injustas, como a de Lula. Ele crê que a legitimidade da
atuação de Moro, que já era frágil, foi jogada por terra no momento em que ele
aceitou ser ministro de Bolsonaro. “Tão absurdo que jamais esperava que isso
fosse acontecer”, ele me disse. Mas Dino não considera a operação “totalmente
errada. “Acho até que a maioria das sentenças da Lava Jato eu assinaria.”
Leia, a seguir, a entrevista com o governador – editada
para melhor compreensão.
Intercept – O senhor tem dito que a esquerda
perdeu a batalha política da classe média, que por sua vez aceitou a pauta da
corrupção como a fonte de todas as tragédias sociais e políticas brasileiras.
Qual a saída para isso?
Flavio Dino – A corrupção de fato é um tema essencial, não há
dúvida, portanto superá-la é importante para o Brasil. Porém, temos que fazer
isso com autenticidade, com seriedade. Por isso mesmo, a corrupção não pode ser
utilizada como arma de luta política e nem pode ser reduzida a determinados
aspectos da vida brasileira, uma vez que as corrupções são variadas e a
principal delas acabou sendo ocultada nos últimos anos, que é a corrupção da
desigualdade social.
Nada corrompe mais o Brasil do que a desigualdade, a
concentração de renda, poder e conhecimento nas mãos de poucas pessoas. Então,
a esquerda não deve fugir do tema da corrupção. Esse tema é nosso, na verdade.
Nós não podemos permitir que esse tema seja apropriado e ao mesmo tempo
manipulado para ocultar outros problemas da sociedade brasileira. A principal
saída é nós retomarmos essa bandeira, que nos pertence, na medida em que somos
nós que defendemos a justiça social, que os recursos públicos sejam aplicados
em favor da maioria do povo.
Em 2018, assistimos ao ex-presidente Lula
tentando sustentar uma candidatura que todo o mundo político sabia ser inviável
por causa da Lei da Ficha Limpa. Enquanto isso, o PT tratou de ceifar apoios do
outro candidato de esquerda, Ciro Gomes – em Pernambuco, ao custo da
candidatura de Marília Arraes em troca da adesão do PSB. Lula errou na
estratégia?
Acho que ele fez a estratégia adequada num momento de grande
ofensiva sobre ele. Acho que é inexigível e chega a ser, eu diria, quase que
desumano imaginar que uma pessoa sob o cerco que ele sofreu pudesse ter adotado
outras atitudes que não a defesa da idoneidade e da seriedade, denunciando as
perseguições que sofreu. Considero que [Lula] sustentou a candidatura até o
limite, até o mês de setembro, com a visão de que se mantendo no jogo político
ele manteria a voz e a tribuna para se defender. Portanto, eu diria que foi o
exercício de um direito, que tinha que ser respeitado.
‘A esquerda não deve fugir do tema da
corrupção. Esse tema é nosso, na verdade.’
Eu próprio, no primeiro semestre de 2018, cheguei a dar uma
entrevista defendendo a união ampla de todos em torno do Ciro Gomes. Mas,
quando logo em seguida o ex-presidente Lula declarou que manteria sua candidatura,
naquelas condições a meu ver para conseguir defender sua história e sua
biografia, eu respeitei, tanto que o nosso partido manteve desde então um
alinhamento à perspectiva de nos coligamos à chapa de Lula presidente e Haddad
vice. [Com] O ex-presidente Lula cercado, atacado, perseguido e vilipendiado,
[eu] considerava que essa é uma estratégia de defesa justa. Nós somos
solidários e, portanto, hoje não faço nenhuma crítica a essa atitude, acho que
ela é compreensível e que atacar o presidente Lula hoje atrapalha o caminho da
esquerda. É claro que ele, como qualquer ator político, qualquer ser humano,
cometeu, comete e cometerá erros, mas não ao ponto de colocá-lo como culpado do
resultado eleitoral. Isso realmente é uma imensa injustiça, e algo que
dificulta a unidade futura.
Acredita que Lula teria sido eleito?
Eu tenho certeza de que seria. Isso torna ainda mais repugnante
o fato de ele ter sofrido uma condenação política, apartada de qualquer técnica
jurídica, exatamente com o objetivo de torná lo inelegível. É um dano
irreparável o que foi imposto a ele. E, na minha visão, claro, à sociedade
brasileira.
É consenso entre analistas que Lula é muito
maior que o PT, por sua vez o maior partido de esquerda do Brasil. A esquerda
brasileira é refém dele? Lula se tornou algo como Vargas, como Perón?
Ao longo da história, as
grandes transformações foram conduzidas por sujeitos coletivos mais
representados por líderes. Um autor marxista russo chamado Plekhanov que tem um livro, do qual gosto muito, chamado “O papel do indivíduo na História“. Ele ressalta exatamente
isso. Olha, os marxistas olham [para] muitos processos objetivos, mas a gente
não pode esquecer que quem materializa, corporifica os processos objetivos são
pessoas. Nesse caso, pessoas que têm determinados atributos que o Lula tem, que
o Getúlio tinha, que outros têm. Então, o fato de existirem grandes líderes de
massas não é algo ruim, datado ou tampouco brasileiro. É normal e é bom que
exista um líder com a extensão, a densidade, a profundidade do presidente Lula.
Eu acho que, se nós olharmos no longo arco da história, daqui a 30, 40, 50
anos, vai ser reconhecido ainda mais que esse grande líder histórico do Brasil,
Luiz Inácio Lula da Silva, tem muito mais virtudes que defeitos e muito mais
ajudou o Brasil do que eventualmente tenha cometido equívocos. Você mencionou o
Getúlio Vargas, ele cometeu gravíssimos erros. Mas, se você faz um julgamento
histórico, no período em que ele exerceu uma liderança o Brasil avançou em
conquistas econômicas e sociais. Então, não acho negativo que haja essa força
da liderança do presidente Lula, que vai continuar a existir nos próximos anos.
Ele vai continuar a ser o principal líder político do Brasil nos próximos anos.
Em entrevista recente ao Intercept, Lula
atribuiu a ascensão mundial da direita ao “fracasso do neoliberalismo”. É tão
simples assim?
O capitalismo vive de fato
uma crise, desde a crise mundial de 2008, e por isso certos parâmetros
institucionais que dirigiram o mundo no pós-guerra, sobretudo os do chamado welfare state, que já haviam sido parcialmente
atingidos nos anos 1980 e 1990 com a hegemonia do pensamento neoliberal, foram
mais agudamente atingidos, com algumas marcas novas, sobretudo um desemprego
aparentemente estrutural e infelizmente muito duradouro. Ou seja, tivemos a
agudização da crise social nos países capitalistas, de modo geral. Nós
aprendemos com a história que numa época de medos e de ódios o pensamento
político da direita encontra terreno fértil para crescer. Não é à toa que nós
tenhamos visto a ascensão do nazi-fascismo exatamente nos anos 1920 e 1930,
cujo marco simbólico é a crise de 1929.
Mas, se você olhar, a primeira guerra imperialista, a Primeira Guerra Mundial,
já era sinal de crise de um modelo do colonialismo do século 19. O trânsito da
humanidade da Primeira à Segunda Guerra, com crise econômica profunda,
desemprego, hiperinflação e desilusão nas instituições democráticas acabou
conduzindo a caminhos autoritários, sobretudo a ascensão de Mussolini na Itália
e de Hitler na Alemanha. Então, é uma conjuntura bastante parecida nesse
sentido, uma grande crise econômica cujo marco é 2008, uma crise social muito
profunda, e isso abre espaço para que haja uma desinstitucionalização da
política derivada de medo, de ódios, em que se busca uma saída aparentemente
mais eficaz. Infelizmente, são momentos como nesse aqui que perspectivas
autoritárias encontram um terreno fértil para se consolidar, como vimos
inclusive no caso brasileiro.
Voltaremos a falar sobre a ascensão da
direita, mas ainda sobre economia: está correto dizer que a política econômica
de Lula, ao menos até 2008, seguiu a mesma cartilha da de Fernando Henrique
Cardoso?
Estamos falando de uma grande economia capitalista do mundo, que
tem constituição e leis que têm que ser cumpridas. Então, é óbvio que havia
muita continuidade, dado esse marco institucional que tem que ser respeitado.
Mas havia uma diferença de ênfase principal, que era o papel do mercado
interno. Havia uma preocupação especial, que não havia nos anos Fernando
Henrique, com o mercado interno de massas, um mercado que sustentasse o
dinamismo econômico. Isso desde 2003, quando você lembra, por exemplo, da
extensão das políticas de microcrédito, e mesmo políticas sociais
compensatórias, como o Bolsa Família, a política de crescimento do valor real
do salário-mínimo. Todas tinham essa amarração estratégica de crescimento do
mercado interno. Isso era substancialmente diferente do que se tinha antes e
também do que se tem hoje. Então, realmente não concordo com essa crítica de
que era mais do mesmo.
No Sul e no Sudeste, é comum ouvir que o
eleitor nordestino vota no PT “porque foi comprado pelo Bolsa Família”. O que o
senhor, que governa um dos estados mais pobres e socialmente problemáticos do
país, responderia a quem diz isso?
Primeiro, que obviamente isso é um preconceito condenável. E, se
você reconhece que o eleitorado do Nordeste vota no PT ou na esquerda em
reconhecimento a políticas sociais, a conquistas como o Bolsa Família, isso
longe de ser errado é profundamente certo. Significa, portanto, não uma prova
de ignorância, e, sim, uma prova de inteligência. Não uma prova de que não sabe
votar, mas de que sabe, porque sabe distinguir onde está seu interesse, sua
perspectiva e seu projeto. Graças a Deus, isso se materializou em mais uma
eleição. Se pega as mil cidades mais pobres do Brasil, praticamente cem por
cento deram a vitória [em 2018] para o Haddad. Então, é um prova de sabedoria.
Acha que foram as políticas sociais que
fizeram com que o Nordeste e as cidades mais pobres majoritariamente seguissem
fiéis ao PT em 2018?
Políticas que beneficiavam o Nordeste, de um modo geral, beneficiavam
os mais pobres do Brasil. Quando se fala de política social, se pensa muito nas
políticas compensatórias. Eu falaria em visão social. Porque houve também
conquistas econômicas e de investimentos públicos e privados em infraestrutura,
a transposição do São Francisco, por exemplo, obras do PAC. É um conjunto
de coisas. Então, a visão social, de combate às desigualdades regionais e
sociais é que determinou esse resultado.
Voltando para a política: o ex-presidente Lula
colocou o senhor como uma das novas lideranças da esquerda brasileira. Pretende
ser candidato a presidente em 2022?
Na verdade, em primeiro lugar, estamos muito longe deste
momento. Em segundo lugar, [a candidatura presidencial] não é algo que possa
ser construído individualmente, pelo contrário. Em terceiro lugar, acho que nós
temos que buscar a união, a unidade. Esse é o critério de ação, destensionar o
ambiente da esquerda, superar todos os impasses e com isso botar todo mundo na
mesa para resistir ao governo Bolsonaro, fazer lutas sociais e ganhar as
eleições municipais de 2020 no maior número possível de capitais e grandes
cidades. Então, esse é o meu foco. Se eu me coloco hoje como pré-candidato a
presidente, eu estou negando o que eu considero principal, porque se você senta
à mesa dizendo que você é candidato a isso ou aquilo, obviamente você não está
aceitando a hipótese de transigir. Eu acho que a gente precisa hoje desse tipo
de união.
Como fazer essa distensão? Ciro Gomes tem dado
seguidas mostras de hostilidade ao PT. Outro dia, disse que nem se fosse
convidado iria visitar o Lula.
Eu lamento muito que o meu amigo Ciro Gomes esteja dizendo
palavras tão ásperas e desnecessárias. Ainda assim, acho que devemos perseverar
no diálogo com ele, porque é uma liderança política de gigantesca importância,
provou em três eleições presidenciais pelo seu desempenho, e compõe um partido
que integra a história brasileira, que é o PDT. E, apesar das declarações, o
PDT, representado pelo presidente Carlos Lupi, continua participando dos fóruns
dos partidos [de esquerda] que se reúnem periodicamente em Brasília. Ele
próprio foi visitar Lula, então acho que, não obstante essas palavras mais
duras por parte do Ciro, acho que não é um obstáculo intransponível. No
processo, consegue-se resolver.
Na entrevista ao Intercept, Lula atacou
duramente a Lava Jato, que para ele nada mais é que uma manobra para evitar que
ele disputasse a presidência e o PT voltasse ao poder. O senhor concorda? Dá
pra dizer que a operação se resume a isso?
A operação Lava Jato é bem complexa,
não há dúvida, portanto multifacetada nas suas origens e nos seus resultados.
Ela foi derivada, sim, de graves casos de corrupção. Mas também de interesses
políticos e econômicos inclusive internacionais. Havia múltiplos determinantes
que levaram à Lava Jato, e, portanto, múltiplos resultados. Você tem resultados
justos e tem resultados injustos. Você tem resultados necessários e positivos e
resultados negativos, perniciosos ao país, como por exemplo prisões injustas –
a do Lula é a mais evidente de todas – e resultados econômicos terríveis,
atinentes à nossa soberania energética. Porque, a partir da visão de
criminalização de tudo e de todos, a Petrobrás perdeu sua energia vital, algo
que nenhum país do mundo faz. Você pega os escândalos, os casos gravíssimos de
corrupção do sistema financeiro dos Estados Unidos em 2008, na crise do subprime:
houve uma atitude de todas as autoridades norte-americanas, tanto políticas
como judiciais, de separar o que eram atitudes pessoais individuais que
deveriam ser punidas e preservar o funcionamento das empresas, os empregos. No
Brasil, não houve isto. Por exemplo: autoridades brasileiras participaram
escandalosamente de um acordo nos Estados Unidos para tirar dinheiro da
Petrobras e portanto atrapalhar que ela possa investir e gerar empregos. Então,
houve uma ideia de destruição de tudo, de todos, com prejuízo para a nação.
‘A partir da visão de criminalização de tudo e
de todos, a Petrobrás perdeu sua energia vital, algo que nenhum país do mundo
faz.’
Eu não diria que a Lava Jato foi totalmente errada, acho até que
a maioria das sentenças da Lava Jato eu assinaria [Dino foi juiz federal entre
1994 e 2006]. Mas seguramente não concordaria nem com a destruição de uma parte
importante da economia e da soberania do país nem que ela [a Lava Jato] fosse
transformada em instrumento de luta política, como é evidentemente se
transformou, sobretudo em relação às atitudes disparatadas que foram tomadas em
torno do ex-presidente Lula. E eu me refiro ao conjunto da obra, desde a
condução coercitiva sem nenhuma razão jurídica – depois, o próprio Supremo
[Tribunal Federal] disse isso – e um processo penal conduzido de modo
atipicamente célere apenas para levar à inelegibilidade.
Provas inexistentes, delações
premiadas que foram extraídas sem legalidade alguma, por exemplo mediante
recompensa financeira, não têm o atributo da voluntariedade, nem capacidade e
aptidão de sustentar uma condenação. Quem diz isso é a lei, não sou eu – a lei
que trata da doação premiada. Depois, um desembargador concede um habeas corpus, e essa ordem é
descumprida, coisa nunca vista na história da Polícia Federal. Só há um caso na
história brasileira em que um habeas corpus foi
dado por um magistrado federal e não foi cumprido [pela Polícia Federal]: o
presidente Lula. Ele foi anulado, por telefone, por um juiz que estava fora do
país [Sergio Moro estava em férias, à época, mas sua assessoria negou então que ele
estivesse fora do país], que depois virou ministro do governo que foi vencedor
[da eleição em 2018] em razão da inelegibilidade do candidato que ele mesmo
condenou. Eu fico imaginando um juiz apitar Corinthians e Palmeiras e quando a
partida termina, aos 45 minutos do segundo tempo, ele tira a camisa de árbitro
e por baixo tem a de um dos times que jogou. Isso realmente iria revoltar o
mundo do futebol, e essa é uma notícia mundial. Foi exatamente isso que
aconteceu no caso do ex-presidente.
O juiz que condenou Lula, Sergio Moro, abriu
mão da carreira e abraçou a política, aceitando ser o fiador moral do governo
Bolsonaro. Qual sua avaliação desse movimento dele? O surpreendeu? Ou era
esperado?
Eu acho tão absurdo que
jamais esperava que isso fosse acontecer. Quando circulou a primeira notícia de
que ele seria ministro do Bolsonaro, um colega seu me ligou e perguntou se eu
sabia do fato. Eu respondi: olha, isso jamais vai acontecer. Esse repórter até
hoje me cobra pelo “isso jamais vai acontecer”. Porque é tão absurdo, ele vai
jogar por terra toda a legitimidade do que fez, que já é frágil, do ponto de
vista jurídico, o que ele tinha feito sobre o triplex. Eu disse: ele não vai
fragilizar mais ainda o que já é frágil. Pois, para minha surpresa, aconteceu.
Então realmente algo incompreensível e inaceitável e escandaloso, certamente
escandaloso [a entrevista foi concedida alguns dias antes do Intercept começar a publicar as reportagens sobre as
conversas secretas da Lava Jato].
A ascensão de Moro de juiz de primeira
instância a herói nacional inspirou seguidores, como o juiz Marcelo Bretas, da
Lava Jato do Rio, e Wilson Witzel, que largou a beca para ser governador. O
senhor também largou a magistratura para entrar na política. O procurador
Deltan Dallagnol, por sua vez, é um defensor quase monotemático, em redes
sociais e campanhas de coletas de assinaturas, do combate à corrupção como a
mãe de todas as batalhas. A Lava Jato virou um partido político?
Virou um bloco de poder, no sentido sociológico da palavra.
Portanto, um partido político. Com projeto, com forma de atuar, com um certo
programa acertado nessa ideia de corrupção como o maior de todos os males, e
com líderes. Sergio Moro é o principal líder desse bloco de poder. Até onde ele
vai, realmente não sei dizer, porque acho que a ida do Moro ao ministério do
Bolsonaro enfraqueceu um pouco esse bloco de poder. E tende a enfraquecer, por
conta exatamente da minha avaliação de que o governo Bolsonaro vai mal, mas de
todo jeito é um bloco no poder assentado com alguns conceitos e muitas ligações
internacionais. Basta lembrar que medidas importantes da Lava Jato, mesmo esse
acordo da Fundação Lava Jato, foram adotados sob intensa direção do
Departamento de Justiça dos Estados Unidos.
Há provas disso?
Está escrito no termo das petições do termo de acordo. Foi parte
do acordo de que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos participou,
formalmente, e é daí que resultou essa inusitada história de uma fundação
privada com dinheiro público, sem prestar contas a ninguém. Felizmente, o
Supremo em boa hora conteve isso.
A gente viu várias vezes o supremo meio que
constrangido pela Lava Jato pelas decisões do Moro. O Teori, mesmo quando era
vivo, algumas vezes parece ter tomado decisões muito incomodado de contrariar a
Lava Jato. Há uma pressão social muito forte contra o Supremo Tribunal Federal
hoje em dia. O que o senhor acha que causou isso tudo um desgaste tão grande a
Suprema Corte a ponto de ela se vê inibida por um juiz de primeira instância?
Nós temos, nas instituições de um modo geral, nas últimas
décadas, uma pressão muito grande da chamada civilização do espetáculo. Há uma
tendência de transformação de instituições e agentes dessas instituições em
artefatos midiáticos. No caso do Judiciário, isso é especialmente desastroso,
porque ele só se justifica pelo fato de haver uma crença de que aquele juiz é
um terceiro acima das partes. E, portanto, julga com imparcialidade e
independência, a única razão pela qual o Judiciário é legítimo, uma vez que ele
nao é eleito, se legitima pelo pelo procedimento, pela atitude.
‘Bolsonaro precisaria se inspirar em bons
exemplos, inclusive da direita, e procurar desarmar um pouco o governo dele.’
Ora, na medida em que um magistrado de qualquer lugar, de
qualquer instância, se transforma num artefato midiático, ele perdeu
independência, porque passa a julgar não de acordo com a sua convicção, a lei e
os autos, e sim de acordo com o que vai agradar ou desagradar a opinião
pública. E isso implica em um grave questionamento em relação ao sistema de
Justiça como um todo, não só em relação a um tribunal determinado. Porque, se o
Judiciário não serve para julgar contra a opinião pública, eventualmente ele não
serve para nada. Se o Judiciário não serve para proteger aqueles que estão em
minoria, ele não serve para nada. Se o Judiciário não serve para proteger a
pessoa que é execrada, não serve para nada. Ele só serve se tiver independência
para proteger inclusive a pessoa que por alguma razão seja execrada pela
maioria, para ser contra o majoritário, não pode ser artefato midiático.
Há um incômodo externado por magistrados, eu já ouvi isso de
vários, sobre essa ideia de julgar de olho no Jornal Nacional. Isso
infelizmente acontece, e tem acontecido com muita intensidade em várias
instâncias judiciais. Isso é péssimo para a democracia e é péssimo para o
próprio Judiciário.
Ainda que tenha havido excessos e que o PT
jure que está fazendo autocrítica internamente, e não para a mídia ou a
direita, como disse Gleisi Hoffmann, não falta ao PT fazer um pedido público de
desculpas ao eleitor?
Porque é que isso foi cobrado apenas do PT, na medida em que,
infelizmente, vários partidos e vários políticos incorreram no mesmo pecado de
relações indevidas com empresas, por exemplo? Há uma ideia de que autocrítica é
uma espécie de flagelação em praça pública. É isso que é cobrado do PT, e eu
considero que autocrítica se faz na prática. Portanto, mais importante do que
se cobrar do PT ou de qualquer outra força política autoflagelação em praça
pública é cobrar a mudança de atitudes, de práticas, de atuação. Isso é o mais
importante, e acho que o sistema político já fez isso, na medida em que, depois
de muita luta da esquerda, se aprovou o financiamento público de campanha. A
principal mudança que o Brasil viveu nos últimos anos, mudança positiva, claro,
foi exatamente a instituição dos fundos de financiamento das campanhas, o que
portanto funcionou como uma poderosa autocrítica de todo o sistema político,
que reconheceu que aquele modelo de financiamento baseado em poucas grandes
empresas estava levando a uma série de práticas indevidas.
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