Editorial
JP, 18 de dezembro
Até
bem poucos tempos, o tornozelo era uma região menosprezada do corpo humano, um
osso de pouca importância, quase sem atrativos, quase incapaz de atrair olhares
curiosos, a não ser quando torcia, doía e inchava demais. Não servia nem como
objeto de luxúria. Poetas escreviam sobre os pezinhos das donzelas, sobre
pernas torneadas, depravados descansavam olhares sobreas as coxas e regiões
mais pudendas; tornozelos, quase ninguém via.
Até
mesmo nos jogos de futebol, onde são usados com uma frequência de doer, os
tornozelos só apareciam como coadjuvantes do pé ou assessores das canelas;
nunca lhes deram o merecido destaque naquele impressionante vai-e-vem. Mesmo
que se aleijando entre pernas duras, cabeludas, desconfortáveis.
De
certa forma, os tornozelos sempre auxiliaram nas grandes caminhadas, testes de
Cooper, contribuindo para o fim da obesidade, para a saúde pública, mas ninguém
reconheceu. Nem mesmo quando, eruditos, guiaram os passos edificantes das
bailarinas russas foram citados particularmente pelos críticos e ensaístas. Nem
perceberam seus esforços com o peso daquelas damas nas pontas dos pés, ninguém
se deu conta da participação dos tornozelos naqueles deslumbrantes balés.
O
desprezo era tal que até os adornos, os enfeites de homens e mulheres quase
sempre envolviam pescoços, pulsos e até as orelhas, mas no tornozelo quase
sempre soavam como exemplos de alguma deformidade mental, ou era coisa de
hippie, de punk, de índio, de alguma tribo fora do contexto da sociedade dita
normal.
Mas
eis que, de repente, o tornozelo evoluiu da condição de tíbia amaldiçoada, de
figurante na escalação dos ossos, para se transformar em espetáculo de Justiça,
em guardião da moral e dos bons costumes. Para a condição de único osso do
corpo humano utilizado na aplicação da lei! Surgiram as tornozeleiras
eletrônicas, artefatos de controle social, de combate ao crime organizado que
tanto servem à vigilância de bandidos de alto coturno (aliás, um objeto que
esconde tornozelos) como para auxiliar o trabalho da polícia e da Justiça. E
foram se instalar no até então mais desapercebido lugar do corpo humano: o
tornozelo.
E
convenhamos que até mesmo a região glútea, por onde passam todas as nossas
porcarias, foi tratada com muito mais destaque que o tornozelo. Agora o
tornozelo se destaca, com os novos adornos eletrônicos e quem usa são grandes
empresários, prefeitos, deputados, senadores, até governadores.
O desprezado tornozelo, finalmente, se vingou.
Hoje, todo mundo olha o tornozelo, para confirmar se, realmente, neste país,
todos são iguais perante a lei.
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