Ao Cão Pastor Feliciano

JM Cunha Santos

Sou negro, um descendente de africanos e, conforme seus ditos e escritos, paira sobre mim uma maldição Bíblica. Sou, segundo lhe foi ensinado não sei por que livros sagrados, descendente de uma geração de amaldiçoados por Noé. “Quem diz não sou eu, é a Bíblia”. Não lhe tiro a razão. Pertenço a uma geração de descendentes de escravos, gente que foi transportada como mercadoria, vendida, amarrada, chicoteada, estuprada, violentada, torturada, assassinada em grupos, aos lotes, como animais a caminho do açougue, por homens que, como o Senhor, Pastor, todos os dias iam às igrejas rezar e pedir favores a Deus.

Não o culpo. A nossa pele é escura e, portanto, a nossa alma deve ser também. Viemos de um continente dominado pela fome, no qual crianças negras e esqueléticas morrem babando sem socorro no meio da rua e sabe você que a gente de Deus é rica, vive na fartura, no luxo e come bem. Nem sequer temos nós, como o Senhor, a capacidade de inventar demônios para roubar o dinheiro dos incautos, de uma gente analfabeta, faminta e desesperançada. Não temos, como o Senhor, venerado e bem votado Pastor, o poder de curar aleijados, cegos, aidéticos e cancerosos ao preço de um depósito em conta corrente no seu nome.

Vai ver, Pastor, nem somos filhos de Deus. Se fôssemos, ele nos socorreria dessa violência histórica, dessa dor que nunca passa, dessa praga bíblica que nos empobreceu, desse dízimo sangrento que nunca acabamos de pagar.

Reze Pastor, ore por nós, peça pelos afrodescendentes que Deus mude a cor de nossa pele, pois sendo brancos, quem sabe, na hora de nos matar, de estuprar nossas filhas e torturar nossos filhos nas prisões, os filhos de Deus possam se arrepender. É a sua função, como filho ungido do Deus Todo-Poderoso, escolhido dos céus para curar doentes, afastar demônios e encher os cofres, amar os pecadores, os amaldiçoados, os que nem deviam estar aqui prejudicando seu olhar.

Apenas uma sugestão, Pastor: Tire o Satanás do próprio rabo e, se acaso alguma permissão de Deus houver, passe pelo menos alguns dias sem existir. A humanidade agradece.