segunda-feira, 13 de abril de 2015

Os fuzis, hoje, há muito tempo depois

JM Cunha Santos



A partir de 1964 era como se cada amante da liberdade, da democracia, dos direitos individuais e coletivos, tivesse um fuzil intermitente apontado para a cabeça. Os colegas de faculdade nem sempre eram estudantes; às vezes eram oficiais de uma polícia política que estudara tortura e medo com a CIA e o FBI.
Vivíamos sob o tacão de leis sufocantes, de uma tirania que escolhia o que você podia ouvir, ler, limitava o que você podia falar, o que ver e, se cuidados maiores não tivesse, até o que lhe era permitido pensar. Poucos, muito poucos, ousavam dizer não, mas logo eram arrastados para o desconhecido, para as fronteiras do talvez e do quem sabe, para as covas do quem sabe e do talvez.
Levou tempo e muita dor até a passeata dos 100 mil, até os estudantes nas ruas chamando o coronel Erasmo Dias de assassino, até a abertura dos portões do exílio, até que os desaparecidos saíssem dos túmulos para assistir à liberdade.
Sem sindicatos, sem Congresso, sem direito de protestar, regido por exceções institucionais, o povo brasileiro cantava escondido, sonhava escondido, pensava escondido. Ou nem cantava, nem sonhava mais e tinha dificuldades para pensar.
Jornais obrigados a esconder os fatos, canções proibidas, livros escritos para ninguém ler, teses acadêmicas sufocadas, poesia oculta nos bueiros, filosofias amaldiçoadas e a mais verdadeira das cortinas de ferro dando laços dentro de nós.
Hoje, há muito tempo depois, quem viveu aquela época exulta com os milhões de brasileiros em marcha nas ruas contra a corrupção. Mas, aqui ali, surgem, entre esse povo, bandeiras sujas, faixas enlameadas em defesa da lógica das baionetas, do ferrolho na boca, do fim de todos os debates, do confinamento das ideias. O fim, afinal, do próprio espírito humano.
O Brasil foi tricampeão e eu escrevi, numa canção de amor, um verso que só a mulher amada leu... sem entender: “A bola rola e é gol da fome, da turbamulta batendo em Deus”.
E isso, o fato dela não ter entendido, me dá o direito de exigir: Tirem daí essas bandeiras. Não peçam que nos apontem mais fuzis. Tremo, só de imaginar, que conseguirão nos impedir de sonhar e de pensar mais uma vez.

Ainda hoje, há muito tempo depois.

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