JM
Cunha Santos
A
partir de 1964 era como se cada amante da liberdade, da democracia, dos
direitos individuais e coletivos, tivesse um fuzil intermitente apontado para a
cabeça. Os colegas de faculdade nem sempre eram estudantes; às vezes eram
oficiais de uma polícia política que estudara tortura e medo com a CIA e o FBI.
Vivíamos
sob o tacão de leis sufocantes, de uma tirania que escolhia o que você podia
ouvir, ler, limitava o que você podia falar, o que ver e, se cuidados maiores
não tivesse, até o que lhe era permitido pensar. Poucos, muito poucos, ousavam
dizer não, mas logo eram arrastados para o desconhecido, para as fronteiras do
talvez e do quem sabe, para as covas do quem sabe e do talvez.
Levou
tempo e muita dor até a passeata dos 100 mil, até os estudantes nas ruas
chamando o coronel Erasmo Dias de assassino, até a abertura dos portões do
exílio, até que os desaparecidos saíssem dos túmulos para assistir à liberdade.
Sem
sindicatos, sem Congresso, sem direito de protestar, regido por exceções
institucionais, o povo brasileiro cantava escondido, sonhava escondido, pensava
escondido. Ou nem cantava, nem sonhava mais e tinha dificuldades para pensar.
Jornais
obrigados a esconder os fatos, canções proibidas, livros escritos para ninguém
ler, teses acadêmicas sufocadas, poesia oculta nos bueiros, filosofias
amaldiçoadas e a mais verdadeira das cortinas de ferro dando laços dentro de
nós.
Hoje,
há muito tempo depois, quem viveu aquela época exulta com os milhões de
brasileiros em marcha nas ruas contra a corrupção. Mas, aqui ali, surgem, entre
esse povo, bandeiras sujas, faixas enlameadas em defesa da lógica das
baionetas, do ferrolho na boca, do fim de todos os debates, do confinamento das
ideias. O fim, afinal, do próprio espírito humano.
O
Brasil foi tricampeão e eu escrevi, numa canção de amor, um verso que só a
mulher amada leu... sem entender: “A bola rola e é gol da fome, da turbamulta
batendo em Deus”.
E
isso, o fato dela não ter entendido, me dá o direito de exigir: Tirem daí essas
bandeiras. Não peçam que nos apontem mais fuzis. Tremo, só de imaginar, que
conseguirão nos impedir de sonhar e de pensar mais uma vez.
Ainda
hoje, há muito tempo depois.
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