quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A escrava

JM Cunha Santos


Meu corpo transportado em nuvens

vinha de paisagens submersas, de lagoas reluzentes

onde os escravos iam se arrepender de serem escravos

e não suicidas, como as moças sem cabaço da vizinhança

A Bíblia, o livro mais sujo da história da humanidade

antes de ser desmentido por Jesus Cristo

só servia para que as peles cortadas por chicotes

sarassem durante a noite

mergulhadas no sal que vinha do mar

e no vinagre que vinha dos homens

Naquele tempo

havia horário garantido para sorrir sem medo

horário para cantar

e nenhuma diferença entre música e gemido

Quando voei

caí em cima de cidades impossíveis

de cidadãos importantes

entrei em arranha-céus que iam até a lua

sufoquei nas grades dos elevadores

e manipulei máquinas menores que minhas mãos

capazes de transportar dores entre dois ou mais continentes

Quando acordei no século 21

os negros eram menos negros

mas ainda eram vendidos em arrobas

ainda tinham olhos e dentes muito brancos

recebiam salários de fome e chicotadas de ódio

e aqueles que sorriam sem pedir licença

ganhavam menos que aqueles que apenas sonhavam com a liberdade

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