domingo, 19 de maio de 2019

Alma penada


JM Cunha Santos



A poesia me obriga a não ser feliz
e eu louvo a necessidade do sofrimento
Eu louvo o coração das pitonisas
e faço aqui minha evocação druida: couro e sangue para os apóstolos
que, cansado de ter alma, pulso como um raio que se quebra ao meio
um Deus que se afoga a caminho da extrema-unção

Meu corpo é muito longe para que o tempo todo eu esteja com ele
minha voz se limita ao que nunca vou dizer
Eu quero convulsões, preciso de convulsões para fazer parar esse futuro
e fazer cessar esse debate de amor com meu cadáver

Sempre o sonho de possuir o que já tinha
Sempre o sonho de devolver o que tomava
Sempre o sonho de encontrar o que já estava ali

Uma culpa, Senhor Deus, me dê alguma culpa
para que eu não seja puro
alguma guerra para que eu não seja pacífico
um pecado só para que eu mereça algum castigo
e estarei contente de existir

Mas era ali, entre os justos, que eu renascia
Ali, entre vultos desossados, que se cumpria meu segundo destino
o de salvar almas a caminho do inferno em hecatombe
o de habitar o lodo e expurgar dos ímpios a miséria sensorial

Quem sou eu, agora, para continuar me sendo - perguntava
Quem, para acender sois que nunca serão vistos por outros olhos
Quem, para juntar todos esses destinos que fiz com minhas mãos

Místico de todos os umbrais, fedendo a esperanças encardidas
vagando entre os abismos das estrelas
passageiro de nebulosas e asteroides fictícios
só me interessava salvar da fome os que mordiam seus semelhantes
somente não querer ouvir os gritos de desespero do planeta Terra
habitar silêncios e escuridão porque, ali, eu ainda me sentia menos morto

Oh, Pai, porque tanta carne faminta no meu porão
Porque sangram tantos cães e tanta gente sente medo
e ainda me pedes para perdoar os tiranos, acariciar os déspotas
assistir impávido ao genocídio de todas as ternuras
ver crianças destroçadas pela ególatra eficiência da raiva humana
e presentear com meu perdão os demônios que varrem a bala minha necessidade de Amor

Eu vim para esse campo em busca de outras histórias
que contassem do poder do beijo sobre o horror multiplicado das armas
Eu quis que todos se esfregassem em protesto contra a hipocrisia da moral humana
e que nascessem anjos nesse inferno de guerras, genocídios e desilusão

Eu quis que o passado não passasse e que o futuro viesse com o passado ainda aqui
Mas me levaram tudo – a valsa, a voz, a vela, a vidência e a vida
e só o que passa por mim agora são essas almas ruins que eu não sei de onde vem

E só me resta cantar; cantar enquanto grito, amar enquanto odeio, praguejar enquanto oro
Na condição desumana de também querer ser Deus e nunca ter motivos para perdoar ninguém

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