quarta-feira, 8 de abril de 2020

CONTOS DE JM CUNHA SANTOS

O JEJUM



- Tu comeu escondido!
- Não. Tu comeu escondido. Falei, ontem mesmo com teu caseiro em Manhattan e ele me disse que enviou uma partida de 19 Kg de lagosta aqui para tua mansão no Brasil.
- Ele também comeu escondido. Liguei para o mordomo dele. 12 arrobas de filé mignon, 3 de peito de faisão e muito caviar russo deram entrada em sua residência.
- Que nada, bêbado! Tu recebeu champanhe e vinhos franceses para um lauto almoço em tua casa, enquanto fingia fazer jejum.
- Eu jejuei, juro que jejuei. Mas o meu maior jejum, hoje, é de dízimos e ofertas. Na seca, não dá nem para fazer milagres.
- Não dá mesmo. Ainda não sei como vou pagar os cadeirantes, aidéticos e  cancerosos que “curei” antes de proibirem os cultos presenciais nas igrejas.
- Oh Deus, será que eles não entendem que nossa atividade é essencial, que nossos fieis não se importam de morrer contaminados por esse vírus porque já têm um lugar garantido no céu?
- O negócio é a gente calcular o que foi perdido em dízimos e ofertas nesse período de isolamento e pedir ao presidente uma Renda Básica Divina para pastores, bispos e diáconos antes que esse vírus nos leve à falência.
- Mas não é aquela miséria de 600 reais, é?
- Não, não. O presidente é nosso e no país inteiro, hoje, para o bem ou para mal, ele só tem o nosso apoio. Nem os ministros mais querem ele lá.
- Pois é. Sem dízimos, sem ofertas e sem a Renda Básica Divina, fico preocupado com a manutenção do meu e dos jatos particulares da minha família. Sinceramente... Nesse miserê fica difícil seguir a Deus e pregar o evangelho do Senhor Jesus Cristo.
E magro, muito magro, faminto, negando a existência da Santíssima Trindade, praguejando contra Jeová e os Apóstolos, olhos sanguinolentos, mergulhado em fúria, o presidente apareceu.
Revoltado, publicamente revoltado, desafiou os pastores, dizendo-se agora adepto da teoria evolucionista de Charles Darwin, praguejou também contra o criacionismo, defendeu às cegas o naturalismo junto com a terra plana, opondo-se a si mesmo, dando sinais de irremovível insanidade filosófica.
Era, naquele momento, o pau mandado de todas as heresias, o arauto das contaminações letais, o cultor das expiações mais cruéis, o escravo de todas as seitas malditas.
- Eu sou um habitante da luz, repetiu várias vezes. Um Escolhido, mas parece que fui atirado ao castigo eterno, jogado aos ímpios e, embora julgue ter a chave do saber divino, ninguém mais me obedece, ninguém me segue, ninguém me ouve. Vivo o maior jejum de poder que um presidente já viveu.
De vocês, depois dos dias torturantes do jejum a que me submeti, esperava que as orações operassem o milagre do meu retorno à cena política, todo poderoso como sempre quis ser; nada aconteceu. Continuo com os generais no meu gogó, o Ministério, os deputados federais, os senadores, os advogados e juízes, os promotores, além daqueles malditos paneleiros que estão a me arrebentar os tímpanos.
Não vou mais ouvi-los. Tudo em que vocês pensam são dízimos e ofertas; não ligam se eu me arrebentar, se me obrigarem a uma renúncia, se me afastarem.
Orastes contra a pandemia e a pandemia ainda está aí, cada vez mais forte, sendo que sou eu a sua maior vítima, o mais enclausurado, o mais entubado, o mais isolado, o mais sozinho. Estou eu a exigir-lhes o milagre supremo: a volta do capitão. Vão jejuar e orar por mim de novo, charlatães. E se em 48 horas eu não tiver condições de demitir todos aqueles ministros, juro que vou usar o pouco poder que me resta para interditar para sempre todas as suas igrejas.
Contritos, Malafaia, Edir Macedo e RR Soares se ajoelharam, pedindo aos céus que os livrasse da fúria do capitão.

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