quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A segunda alma

JM Cunha Santos


 

Hora de devolver a alma.

Mas não a carreguem entre pedras

que é frágil e escorrega no limo

não deixem que passe entre supremacistas

que é frágil e suja fácil e emborca ao sabor do vento

Não é uma alma qualquer; é uma alma suada

que se banhou em tanques de justiça

navegou nos mares de Camões, enfrentou dragões

casou-se com divindades no mar Egeu

amasiou-se com pitonisas durante a borrasca

uma alma estranha que nunca obedeceu ordens

e quando se sentiu sozinha não teve dúvidas e beijou a solidão

 

Hora de devolver a alma.

Não a carreguem, entanto, entre tiranos

não permitam que assista tiroteios no meio da tarde

que se trata de uma alma muito antiga

que enfrentou os faraós no Egito

que discursou contra os césares de Roma

e se juntou aos filhos da terra quando os tratores e os rifles chegaram

Não é uma alma qualquer; é uma alma em muitos corpos

que foi entregue aos meninos para que brincassem de assombração

uma alma que nunca dormiu, nem acordou, sonhou apenas

que esteve com os gatos nos telhados, com os pássaros no sol

e quando sentiu o chão lhe faltar aos pés construiu seu próprio horizonte

 

Essa é a minha segunda alma. Eu a entrego e devolvo limpa

Não a deixem aqui que já lhe cansa estar no mundo

Levem com cuidado e entreguem descascada e pura nas mãos do senhor Deus

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